Economia é a ciência da casa. Este “eco”, saído de nomos (grego) quer dizer casa. De forma quase poética, economia é cuidar da casa. A casa é para os ocidentais um dos principais símbolos de estabilidade. Não é só uma edificação material, muito mais do que isso, a casa é o espaço da plenitude humana. Desta forma, estar e muito mais do que isso, sentir-se em casa é condição para quaisquer formas de transcendência, exigência para a própria elevação da qualidade humana para níveis superiores de existência. Neste estagio de redefinição subjetiva tem-se uma transformação profunda nas formas relacionais que este mesmo homem estabelece com o mundo objetivo, com o meio da qual é parte e por fim, consigo mesmo.Na economia a casa tem sempre muito a nos dizer. É metáfora, paradoxalmente pouco utilizada nas lecionas da economia, contudo, fértil em aprendizagens, comparações e exemplificações. Neste sentido, traz-se à baila a idéia da casa para, de alguma forma, dialogar sobre o drama da especulação financeira e que tem precipitado todo o mundo da economia para um despenhadeiro de desconhecida profundidade.
Convido-os ao vislumbre imaginativo de uma linda e bucólica casa em uma reconfortante praia. Na paisagem temos, além da casa, um lindo mar azul que prateia sob os auspícios insulares; gaivotas a rodopiarem leves no azul celestial e uma extensa praia que segue indefinida em um serpenteio ziguezagueante como se estivesse enamorada das travessuras ondulares. Uma brisa amena burila suave no fino terral praiano, acalentando as faces vermelhas dos moradores e encetando uma hipnótica coreografia de movimentos sutis e caoticamente envolventes a partir da vegetação circunvizinha o que enche os sentidos de beleza, paz e deleite. Pois bem… Todo esse cenário será agora destronado pelo súbito surgimento de uma tsunâmi vinda não se sabe de onde e que seguiu em um crescendo ameaçador o que em pouco tempo, irá pôr fim a toda esta paisagem liricamente descrita. Já bem entendeu meu paciente leitor de que a casa em questão é a economia. Como tal, possui uma base. Está devidamente assentada, possui cômodos, áreas de serviço e passeios. Está adequadamente dividida, possui portas e janelas para a proteção e para a entrada comedida de ventos e brisas. Esta casa, pois, atende bem e satisfatoriamente seus moradores. Da mesma forma, o atento leitor entendeu de que a tsunâmi descrita representa aqui o atual cenário financeiro e que tomou conta das economias mundiais. Essas duas realidades não combinam, não são possíveis e não oferecem qualquer tipo de futuro. A casa, em que pese ser adequada como moradia, não foi feita ou projetada para suportar a enorme força de uma onda de dimensões quilométricas. É o que estamos a viver no mundo da economia. A sanha dos capitais especulativos segue em sua marcha de descontroles a ameaçar a chamada economia produtiva ou real. Países de economia central como os Estados Unidos, bem como toda a Europa amargam crises profundas e apresentam crescimentos pífios ou mesmo negativos. O que falar da crise grega, devastadora e que dilatou o seu endividamento internacional para mais de 800 bilhões de euros, maior, em pelo menos dez vezes do que todas as suas atividades produtivas? E a Espanha empacada em aberrantes trinta por cento de desemprego e que, não por acaso, se vê às voltas com uma gigantesca efervescência de cidadania nas praças de suas principais cidades e que, tomadas por acampamentos de juventude, exige um modelo de economia contrário à lógica financista dos banqueiros? E Portugal com suas divisas carcomidas pela fúria bancária e que a tornou uma das mais pobres economias da zona do euro? E a Islândia, tão bem descrita no genial filme Inside Job (Trabalho Interno) com um PIB de 10 bilhões de euros e um endividamento 12 vezes maior, tudo pelo descontrole financista de apenas três instituições bancárias? São muitos os exemplos a serem contados, são muitas as lições a serem aprendidas e apreendidas.O Brasil, sob qualquer aspecto, não está imune a este tipo de distúrbio econômico. De forma equivocada, fez opção pelo rentismo bancário e, não deu outra, está em uma camisa-de-força chamada banca internacional. Para uma vaga idéia, vejamos um pouco de história. Tendo em vista os estragos que a inflação fez na economia brasileira nos anos de 1980 e 1990 surge uma espécie de consenso nacional acerca da necessidade de políticas de efetivo controle inflacionário. Desse consenso surge, por determinação do FMI, sobretudo depois da crise de 1998, quando o Brasil recorre ao Fundo, o conhecido Regime de Metas de Inflação. Assim, é editado em junho de 1999 o decreto 3.088 que instituía as “metas de inflação” como diretriz para a fixação do regime da política monetária brasileira. No mesmo período, o Banco Central edita a circular 2.868/99 que cria a taxa SELIC e, a partir daí, sempre que as tais metas são ameaçadas de serem cumpridas por meio do crescimento inflacionário a taxa SELIC tem o seu aumento forçado (a meta de inflação estabelecida é de 4,5%, ao ano). Esse dispositivo inibe o consumo, bem como investimentos públicos ou privados. O resultado não poderia ser outro, a taxa SELIC tem contribuído sobremaneira para a elevação das já astronômicas taxas de juros brasileiras. Conseqüência imediata desse processo é a explosão da dívida pública cujos valores ultrapassam a inimaginável cifra de R$ 2,5 trilhões, enquanto a rapinagem segue auferindo lucros por meio do pagamento de juros e amortizações, o que consome 45% de todas as receitas do orçamento público federal. Em um ordenamento econômico de tal natureza, não tem jeito, a economia caminha de marcha ré. Fato é que a taxa SELIC não tem cumprido o seu papel de combater a inflação. O que tem feito e muito bem, é transferir recursos públicos para o setor financeiro privado – nacional e internacional. Dados do SIAFI[i] sobre a execução do orçamento da união e publicado em excelente artigo de Maria Lucia Fattorelli (Le Monde Diplomatique – Brasil, ano IV, no. 47; Junho/2011, págs. 06 a 08) intitulado “A Inflação e a Dívida Pública”, demonstram que o orçamento geral da união para o ano de 2010 (R$ 1.414 trilhão), foi criminosamente distribuído da seguinte forma: 44,93% para pagamento de juros, amortizações e refinanciamento da dívida; 22,12% para a previdência social; 9,24% para estados e municípios; 3,91% para a saúde; 2,89% para a educação; 2,74% para a assistência social; 0,56% para a segurança pública; 0,64% para a agricultura, dentre outras subdivisões tristemente situadas entre zero e um por cento. De longe, a especulação financeira é a grande boca (ou ralo!) do orçamento público brasileiro.O mais curioso e dramático desta sangria econômica é que seu movimento e reprodução e que atinge zilhões de dólares mundo afora, não é capaz de gerar um único emprego, não faz um metro quadrado de asfalto, não põe um banco em uma praça, uma única cadeira em uma sala de aula, não cria um leito de hospital e não fornece uma aspirina para um cidadão. Não é só estranho, é bizarrice do começo ao fim. E a quem diga que se trata de economia… Nem aqui e nem na China (sobretudo na China!). A casa, definitivamente, não suporta.
*Ângelo Cavalcante é economista, cientista político, professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG), campus Itumbiara e Editor do jornal Boletim Econômico. E-mail: angelo.cavalcante@ueg.br